quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Vingança

A cerveja desceu suave. Era como se tivesse aberto o caminho com uma dose de steinhaeger antes do gole merecido da bebida gelada. Olhos cerrados, franzindo suas têmporas que já apresentavam algumas rugas do tempo, o punho forte levantando a caneca de vidro transparente, levando como um guindaste criado pelo conjunto braço, punho, caneca e cabeça, a cerveja escorrer pelos cantos da boca. A cabeça inclinada evidenciava o pomo de adão, único a mostrar que o líquido descia escandalosamente rápido pela sua garganta. Em menos de 20 segundos, jogou sua cabeça para frente, maxilar travado, lábios dramaticamente abertos com um ruído sibilante saindo por entre os dentes amarelados pelo cigarro. A caneca bateu no balcão como um martelo. Um gemido de prazer em forma de um interminável “ah” fez o barman trazer, sem ser consultado, mais uma caneca com a bela bebida encimada por uma cândida espuma.
_ Este primeiro desceu bem. Foi para matar minha sede. Este segundo, bem, este é para sorver com calma e aproveitar o sabor. Não, não quero nada para comer. Quero sentir o álcool entrando sem interferências em meu sangue. Quero meu cérebro ébrio. Morrer de barriga cheia não me parece ser coisa boa. Não gosto de pensar na comida apodrecendo mais rápido que minha carne. Deve ser como um porco ou um perú recheados com frutas, farofas e outros recheios. Mortos mas estufados de comida. Eu disse a ela que fosse primeiro. Eu precisava passar aqui neste bar que tantas vezes me acolheu em minhas incertezas e nas errantes certezas. Ela insistiu para que eu ficasse. Para quê? Perpetuar o sofrimento? Manter por mais alguns minutos nossa tragédia viva? Ser ao seu lado, cúmplice de sua envolvente loucura que me leva agora a este extremo? Não! Ela que vá primeiro. Antes eu tinha que vir até o bar. Sempre foi assim! Ela concordou a contragosto.
_ Você prepara para mim? Acho que tenho medo – disse ela tranquilamente, certa de ter escolhido esta opção em por fim a sua vida.
_ Ora, eu preparo para você. Não corroo risco de ser preso por este delito. Não numa cadeia. Talvez num caixão barato. Mas só o meu corpo. Você me espera do outro lado como combinamos, ok?
_ Claro, meu amor. Não vou te decepcionar. Sou sua para sempre, aqui e depois da morte. Vamos viver eternamente!
Preparei o veneno como quem prepara um delicioso drink. Levei o copo até ela que pediu:
_ Agora sai. Não quero que você veja. Vai beber sua cerveja, se despedir de seu bar preferido. Estarei te esperando do outro lado. Confio em você.
Beijei sua boca buscando seu sabor com minha já sentenciada língua. Saí andando de costas e fechei a porta fazendo seu lindo e sorridente rosto desaparecer.
A segunda caneca acabou. _ Bebo outro ou paro por aqui? – pensei. Ora, vou tomar mais um e tomar coragem para concluir o que já está decidido. A terceira caneca chegou. Parecia mais brilhante, amarelo ouro, com a espuma branca e espessa contrastando com o escuro ambiente do bar. Talvez tenha olhado para a caneca com certa nostalgia, e percebido detalhes que antes não levava em conta. O que antes era apenas uma caneca de cerveja, parecia agora um presente de Deus, uma dádiva, um maná. Tirei do bolso de meu paletó o pequeno frasco do potente veneno e bebi de um só gole. Antes que ele chegasse ao estômago, tomei o conteúdo da caneca da mesma maneira que fiz com a primeira. Sem saber quanto tempo levaria para morrer, tirei umas notas de dinheiro do bolso e deixei no balcão. Não queria ir para o outro lado deixando dívidas de bar. Já as de banco, quem se importa com isso? Sempre me roubaram todos estes anos.
O bar começou a parecer turvo, minha cabeça ficou dormente, um gosto amargo de sangue subiu por minha garganta enchendo minha boca com seu ferruginoso sabor. Minha cabeça caiu inerte e pesada sobre o balcão, da mesma forma que eu fizera com as canecas durante dezenas de anos.
Saí de meu corpo, sentindo-me leve. Vi todos do bar correndo e tentando me reanimar. Achei aquilo engraçado pois sabia que era em vão. Virei para a porta, instintivamente buscando a saída e vi minha amada. Para minha surpresa, ela não estava morta. Estava acompanhada de uma outra, de mãos dadas. Olhou para meu corpo caído, com as pessoas se afastando por não terem mais nada a fazer, olhou para sua companheira e esboçaram um sorriso, saindo em seguida.
Pobre amada. Desde então assombro sua vida, transformando em medo todas as coisas a sua volta. Serei impiedoso em minha vingança até o dia que eu conseguir trazê-la para o meu lado. E ela será eternamente minha.



Paul Richard Ugo